PORQUE NÃO SOU UMA ESTANTE (NEM UM CANAPÉ)
Tenho inúmeros livros na cabeça, alguns da capa à contracapa, sei-os quase de cor; li magras edições, revistas de quadradinhos, calhamaços e coisas ditas sérias, até o Anthony Giddens me ensinou que “para controlarmos o futuro, é necessário que nos libertemos dos hábitos e preconceitos do passado” – e todavia tudo isso não faz de mim uma estante.
Já dormiram sobre mim – e nunca fui almofada ou cama.
Já tive pessoas ao colo, algumas recém nascidas outras bem graúdas – e nunca me vi como se fosse um sofá ou uma estante, nem isso fez de mim um canapé.
Por falar em canapé, sei o que é. Também sei o que é uma chapoletada e em que contexto se usava, ou que é fazurca, tendo participado em algumas. Ouvi avós dizerem que esta e aquela coisa era chumbrega, sei o que é larica, e sápido, e algésico, distingo uma muçurana de uma jararaca e até retive o significado de palavras que não se usam há séculos.
Tenho esta mania tão antiga que, há uns vinte anos, fiz questão de ir a um leilão e arrebatei o seguinte livro, por preço que é uma vergonha partilhar: Elucidário das palavras, termos e frases que em Portugal antigamente se usaram e que hoje regularmente se ignoram: obra indispensável para entender sem erro os documentos mais raros e preciosos que entre nós se conservam / Publicado em Beneficio da Litheratura Portugueza Por Fr. Joaquim de Santa Rosa Viterbo.
Foi a minha prenda de anos, nesse ano. (Tenho o hábito de me dar sempre uma prenda nos anos e outra no natal, pensem lá o que quiserem).
Um livro exemplar em Beneficio da Litheratura Portugueza!!!
Da Ordem dos Frades Menores Franciscanos, Viterbo sabia muito do que escrevia, fazia-o com muito conteúdo e com a grafia mais à mão.
Eu pouco sei. Mas sei que não há uma língua de Camões pois que palavras novas parece que só inventou uma – famulento – mas sabia outras que hoje ninguém sabe, como humílimo ou inconcesso, cônsono e belígero, aliás palavras tão dele como dos castelhanos, e nem mesmo as criaturas que andam agora a gritar em nome dele como se soubessem o que dizem, sabem que palavras são essas, para que servem, ao que iam.
Arrepia-me também aquela frase do Pessoa que só tem alguma graça fora do contexto em que foi escrita pelo seu heterónimo Bernardo Soares. Arrepia-me porque lida seguida do objetivo com que a escreveu até causa calafrios:
«Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente. Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a orthographia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-m’a do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.»
Livro do Desassossego, Lisboa, Ática, 1982 vol. I, págs. 16-17.
Jorge Semprún terá dito, por seu turno: “a linguagem é a minha pátria.“
Mas sem plágios.
Virgílio Ferreira ganhou uma presença ampla nas citações com uma frase que deve galgar o isolamento, ganhando o contexto em que foi dita e lendo-se por completa: « Uma língua é o lugar donde se vê o Mundo e em que se traçam os limites do nosso pensar e sentir. Da minha língua vê-se o mar. Da minha língua ouve-se o seu rumor, como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto. Por isso a voz do mar foi a da nossa inquietação.»
Excerto do texto «A Voz do Mar», lido por Vergílio Ferreira em 1991, na cerimónia em que lhe é atribuído o Prémio Europália (Bruxelas)
Uma língua da inquietação e não da contemplação, portanto.
Não sou exemplo para ninguém e por acaso muito me pesaria e me incomodava pessoalmente se tomassem Portugal. E não sou capaz de odiar. Desculpem-me. Mesmo os que insultam quando digo coisas destas, não vos odeio, amiguinhos.
Pior ainda, sou dos que acredita que a única pátria possível é o encontro permanente com o outro, o que me leva a sair de mim a maior parte das vezes, sobretudo a sair de zonas de conforto, a não comprar brigas – porque as batalhas não permitem perder tempo.
Nada do que escrevemos faz, definitivamente de nós coisas remotas, em especial se nos decidirmos pela liberdade (“para controlarmos o futuro, é necessário que nos libertemos dos hábitos e preconceitos do passado”).
Em conclusão, definitivamente, não sou uma estante ou um canapé. Também não me ralo com quem está, sem grande fundamentação aposto, em folclórico desacordo.
Alexandre Honrado
Historiador